domingo, 31 de julho de 2011

Cade Você?

Dizem que materializar os sonhos escrevendo ajuda, então
lá vai: quero transar com beijo na boca profundo, olhos nos olhos, eu te
amo e muita sacanagem, quero cineminha com encosto de ombro cheiroso,
casar de branco, ser carregada no colo, filhos, casinha no campo com
cerquinha branca, cachorro e caseiro bacana. Quero ouvir Chet Baker numa
noite chuvosa e ter de um lado um livrinho na cabeceira da cama e do
outro o homem que amo.

Quero sambão com churrasco e as famílias reunidas. Quero ter certeza,
ali no fundo da alma dele, de que ele me ama. Quero que ele saia
correndo quando meu peito amargurado precisar de riso. Que ele esqueça,
de vez em quando, seu lado egoísta, e lembre do meu. Que a gente brigue
de ciúmes, porque ciúmes faz parte da paixão, e que faça as pazes
rapidamente, porque paz faz parte

do amor. Quero ser lembrada em horários malucos, todos os horários, pra
sempre. Quero ser criança, mulher, homem, et, megera, maluca e, ainda
assim, olhada com total reconhecimento de território. Quero sexo na
escada e alguns hematomas e depois descanso numa cama nossa e pura.
Quero foto brega

na sala, com duas crianças enfeitando nossa moldura. Quero o sobrenome
dele, o suor dele, a alma dele, o dinheiro dele (brincadeira...). Que
ele me ame como a minha mãe, que seja mais forte que o meu pai, que seja
a família que escolhi pra sempre. Quero que ele passe a mão na minha
cabeça quando eu for

sincera em minhas desculpas e que ele me ignore quando eu tentar
enrolá-lo em minhas maldades. Quero que ele me torne uma pessoa melhor,
que faça sexo como ninguém, que invente novas posições, que me faça
comer peixe apimentado sem medo, respeite meus enjôos de sensibilidade,
minhas esquisitices depressivas e morra de rir com meu senso de humor
arrogante. Que seja lindo de uma beleza que me encha de tesão e que tenha um beijo que não
desgaste com a rotina. Que a sua remela seja sequinha e não gosmenta e
que o tempo leve um pouco de seu cabelo (adoro carecas...). Que suas
escatologias não passem de piada e se materializem bem longe de mim. Tem
que gostar de crianças, de cachorrinhos, da minha mãe, e tem que odiar
ver pessoas procurando comida no lixo. Tem que dançar charmoso, ser irônico, ser
calmo porém macho (ou seja, não explodir por nada mas também não calar
por tudo). Tem que ser meio artista, mas também ter que saber cuidar dos
meus problemas burocráticos. Tem que amar tudo o que eu escrevo e me
olhar com aquela cara de "essa mulher é única".

É mais ou menos isso. Achou muito? Claro que não precisa ser exatamente
assim, tintim por tintim. Exigir demais pode fazer eu acabar sozinha em
mais shows do Roberto Carlos. Deus me livre! Bom, analisando aqui, dá
pra tirar umas coisinhas. Deixa eu ver... Resumindo então: tem que dizer
que me ama e me amar mesmo, tem que rolar umas sacanagens e não pode
ter remela  gosmenta. Pronto!

E quando eu tiver tudo isso e uma menina boba e invejosa me olhar e
pensar que "aquela instituição feliz não passa de uma união solitária de
aparências" vou ter pena desse coração solitário que ainda não
encontrou o verdadeiro amor.
 
Tati Berbardi

Eu preciso saber

A recaída de amor acontece como num daqueles pesadelos que se está caindo. De repente você acorda sentado na cama: Meu Deus, eu preciso saber! Mas se eu já estava tão bem há semanas. Volte a dormir, volte a dormir. Você já tinha decidido lembra? Nada a ver com você, chato, bobo, não deu certo. Mas eu preciso saber. Não, não precisa. Pra quê? Vai te machucar. Não! Eu preciso saber. Então levanto da cama.
Facebook, a desgraça em formato de parquinho virtual. Nome dele, aparece a foto azulada e ele de perfil. É tão bonito. Mas não há mais nada que eu possa ver. Nos deletamos mutuamente pra evitar justamente esse tipo de inspecão noturna.
Mas isso não vai ficar assim. Ligo pra nossa amiga em comum. Ela não atende, afinal, são duas da manhã. Mando mensagem "me manda sua senha do Facebook agora ou vou ficar te ligando até amanhã cedo". Ela manda a senha e um palavrão. Acesso. Vamos ver. Eu preciso saber. Eu preciso. Então vejo que ele não posta nada há cinco semanas. Fotos, fotos. A única foto nova é o flyer de uma festa que eu fui e ele não estava. Nada.
Jogo o nome dele no Google. Aparece uma foto dele alcoolizado dando entrevista em uma festa de mídia. Como é lindo. Tento o Twitter mas ele só escreve piada de político. Tento o Facebook, Twitter e blogs de amigos. Está ficando tarde. Se eu tivesse essa mesma concentração e minuciosidade e empenho e energia para o trabalho estaria rica. Estou retesadamente motivada e atenta. Mas não consegui nenhuma informação e eu ainda preciso saber.
São seis da manhã. Estou cansada. Coloco a música de quando você forçou a porta do quarto e entrou. Black Swan. Não sou boa de inglês como você, mas sei que é a história de algo que já começou fodido porque cresceu demais antes da hora, você que pegue um trem e suma daqui. Que bela música pra começar. Ok, agora estou chorando. Lembrei que eu me sentia tão viva com você me olhando bem sério e bem no fundo dos olhos e machucando meu braço. Sim, é definitivamente uma recaída e eu acabo de decidir que te amo mais que tudo no universo e que amanhã, ou hoje, porque já são sete e meia da manhã, vou resolver isso. Agora preciso dormir só um pouquinho.
Volto pra cama. Coração disparado. Não tem posição na cama. O que eu faço? Não tô a fim de ler, não tô a fim de ver TV. Aquelas outras coisas que se faz pra acalmar tô com preguiça agora, minha imaginação está indo toda para traçar um plano para que eu descubra. Descubra o quê? Não sei, mas sei que algo está acontecendo, ou eu não estaria assim. Porque eu sinto quando ele está com alguém, sabe? Eu sinto. Sim! A cartomante!
Ligo pra Zuleide. Você atende hoje? Mas é domingo, Tati! Atende? Só se for por telefone. Tá bom, então joga aí: ele está com alguém? Mas Tati, você quer mesmo saber isso? Quero, mulher. Eu preciso saber. Joga aí: ele está com alguma puta? Tati, eu não posso perguntar isso pras cartas. Pergunta aí: ele tá com alguma piranhuda desgraçada vagabunda vaca dos infernos? Zuleide pede desculpas e desliga. Preciso do Lexapro mas ele acabou há semanas, igual meu amor. E agora, de repente, preciso tanto dos dois novamente.
Você acha que ele está com alguém? Não sei, Tati, eu ainda tô dormindo, posso te ligar mais tarde? Você acha que ele está com alguém? E se estiver, Tati, quer ir ao cinema mais tarde? Você acha que ele está com alguém? Putz, sei lá, homem sempre tá comendo alguém né? Você acha que ele está com alguém? Tati, do jeito que ele gostava de você? Claro que não!
Chega, chega. Preciso me acalmar. Pra que isso? Se ele estiver com alguém agora, e daí? Terminamos não terminamos? Ele e eu não temos nada a ver, certo? Decidimos que era melhor assim, certo? Eu não tava bem com ele e nem ele comigo, certo? Porque era bom e tal. Aliás, meu Deus, como era bom. Mas não era bom pra ficar junto, certo? Então pronto. Chega. Adulta, adulta. Qual o problema se ele estiver agora, justamente agora, lambendo a virilhazinha de alguma desgraçada? Qual o problema? Ok, eu posso morrer. Eu definitivamente posso morrer. Chega, vou acabar com essa palhaçada agora mesmo.
Tomo banho, me visto, pego a bolsa, entro no carro. Considerando que ele não mora em São Paulo, não sei exatamente o que eu pretendo com isso. Mas me faz bem enganar o cérebro e fazer de conta que estou indo atrás da verdade. Na verdade vou só na casa de outro, preciso fazer qualquer coisa que não seja sofrer, mas não consigo. O outro não conhece Black Swan, não ri da história da Zuleide, não me aperta o braço.
Volto pra casa, destruída. Sinto tanto amor dentro de mim que posso explodir e bolhas de corações vermelhas atingiriam o Japão. Quase não consigo respirar. Chega, chega. Ligo pra ele. Ele não atende. Ligo de novo. Ele atende falando baixinho. Você está com alguém? Estou. Desligamos. Pronto, agora eu já sei. Depois de um final de semana inteiro de palpitacões, descargas de adrenalina, músicas, textos, amigos, danças, gritos, sensações, assuntos, choros, dores, vida. Agora eu já sei.
O que eu nunca vou saber é porque faço tudo isso comigo só porque tenho tanto pavor do tédio. Era só isso o que eu precisava saber.


Tati Bernardi

domingo, 8 de maio de 2011

O Caderno de Noah ou O Diario de Uma Paixão - Nicholas Sparks

O Caderno de Noah  ou Diário de Uma Paixão
Nicholas Sparks
Romance  


"A razão por que a despedida nos dói tanto é que nossas almas estão ligadas. Talvez sempre tenham sido e sempre serão. Talvez nós tenhamos vivido mil vidas antes desta e em cada uma delas nós nos encontramos. E talvez a cada vez tenhamos sido forçados a nos separar pelos mesmos motivos. Isso significa que este adeus é ao mesmo tempo um adeus pelos últimos dez mil anos e um prelúdio do que virá." 

O CADERNO DE NOAH é ambientado no Sul dos Estados Unidos, onde dois jovens, Noah e Allie, envolvem-se numa grande paixão. Mas Allie pertence a uma família poderosa e está prestes a se casar com um brilhante advogado. A comovente história de amor dos dois nos é contada por um Noah já octogenário, que, através deste recurso, busca recuperar a memória de sua amada, que sofre do Mal de Alzheimer.

 Bom eu li esse livro numa edição de seleções por isso o conheci como O Caderno de Noah, mas tarde vi o filme O diario de uma Paixão e descobri que era a mesma historia, fiquei encantada, é um livro extremamente envolvente, a espera de Noah, a sua dedicação quando a esposa fica doente, como ele cuida dela com todo amor e carinho sem ela se quer lembrar quem é ele e tudo que eles passaram para ficar juntos.... Confesso que chorei, na realidade Nicholas Sparks  é um autor maravilhoso acredito que não exista quem lê ou vê um filme baseado em sua obra que não suspire no fim do filme ou livro, eu particularmente prefiro os livros, acho que os filmes deixam muito a desejar em relação ao livro, por exemplo em Um Amor para Se Recordar vc tem a certeza que ela morre, no livro fica a dúvida já que ele afirma no final, Hoje Eu Acredito em Milagres!
Bom esse livro fica como dica para quem curte um romance bem feito, Nicholas Sparks é sinonimo de um ótimo romance, para mim, o seu melhor é Uma Carta de Amor, mas é claro, por ter visto os mesmo que acontece com Noah e Allie com minha Avó e meu Avô, me apaixonei pelo Diario de Uma Paixão....

sábado, 30 de abril de 2011

LUA CRESCENTE EM AMSTERDAN (Conto)

O jovem casal parou diante do jardim e ali ficou sem pa¬lavra ou gesto, apenas olhando. A noite cálida, sem vento. Uma menina loura surgiu na alameda de areia branco-azulada e veio correndo. Ficou a uma certa dis¬tância dos forasteiros, observando-os com curiosidade en¬quanto comia a fatia de bolo que tirou do bolso do avental.
- Vai me dar um pedaço desse bolo? - pediu a jovem estendendo a mão. - Me dá um pedaço, hem, menininha?
- Ela não entende - ele disse.
A jovem levou a mão até a boca.
- Comer, comer! Estou com fome - insistiu na mímica que se acelerou, exasperada. - Quero comer!
- Aqui é a Holanda, querida. Ninguém entende.
A menina foi se afastando de costas. E desatou a correr pelo mesmo caminho por onde viera. Ele adian¬tou-se para chamar a menina e notou então que a estreita alameda se bifurcava em dois longos braços curvos que deviam se dar as mãos lá no fim, abarcando o pequeno jardim redondo.
- Um abraço tão apertado - ele disse. - Acho que este é o jardim do amor. Tinha lá em casa uma estatueta com um anjo nu fervendo de desejo apesar do mármore, todo inclinado para a amada seminua, chegava a enlaçá-la. Mas as bocas estavam a um milímetro do beijo, um pouco mais que ele baixasse... A aflição que me dava aquelas bocas entreabertas, sem poder se juntar. Sem poder se juntar.
- Mas que língua falam em Amsterdã?
A língua de Amsterdã - ele disse enfiando os dedos nos bolsos da jaqueta, à procura de cigarros. - Teríamos que morrer e renascer aqui para entender o que falam. 
- Queria tanto aquele bolo, não sente o cheiro? Queria aquele bolo, uma migalha que fosse e ficaria mastigando, mastigando e o bolo ia se espalhar em mim, na mão, no cabelo, não sente o cheiro?
Ele limpou nas calças os dedos sujos da poeira de fumo que encontrou nos bolsos.
- Vamos dormir aqui. Mas vê se pára de chorar, quer que venha o guarda?
- Quero chorar.
- Então chora.
Molemente ela se recostou numa árvore. Enlaçou-a. Os cabelos lhe caiam em abandono pela cara mas através dos cabelos e da folhagem pôde ver o céu.
- Que lua magrinha. É lua minguante?
Ele avançou até o meio da alameda e expôs a cara que se banhou na luz do céu estrelado.
- Acho que é crescente, tem o formato de um C. Vem, querida, ali tem um banco.
- Não me chame mais de querida.
- Está bem, não chamo.
- Não somos mais queridos, não somos mais nada.
- Está certo. Agora vem.
- O banco é frio, quero minha cama, quero minha cama - ela soluçou e os soluços fracamente se perderam num gemido. - Que fome. Que fome.  
- Amanhã a gente...
- Quero hoje! - ela ordenou endireitando o corpo. Voltou para ele a face endurecida. - Se você me amasse mesmo, faria agora um ensopado com seu fígado, com seu coração. Meus cachorros gostavam de coração de boi. Não vai me fazer um ensopado com seu coração, não vai?
- Meu coração é de isopor e isopor não dá nenhum ensopado. Li uma vez que - ele acrescentou. Puxou-a com brandura: - Vem, Ana. Ali tem um banco.
- Meu coração é de verdade.
Ele riu.
- O seu? Isopor ou acrílico, na história que li o homem achou que tinha tanto sofrimento em redor, mas tanto que não agüentou e substituiu seu coração por um de acrílico, acho que era acrílico.
- E daí?
Ele ficou olhando para os pés enegrecidos da jovem, forçando as tiras das sandálias rotas. Subiu o olhar até o jeans esfiapado, pesado de poeira.
- Daí, nada. Não deu certo, ele teria que nascer outra coisa.
- Você sabia contar histórias melhores. Sob a camiseta de algodão transparente os peque¬ninos bicos dos seios pareciam friorentos. E não estava frio. Foram escurecendo durante a viagem, ele pensou. Qual era a Ana verdadeira, esta ou a outra? A que jurou amá-lo na terra, no mar, no braseiro, na neve, debaixo da ponte, na cama de ouro.
- Você mentiu, Ana.
- Quando? Quando foi que menti?
Ele desviou o olhar desinteressado. 
 - Vem, que amanhã a gente vai ver o museu de Rembrandt, lembra? Você disse que era o que mais queria ver no mundo.
- Tenho ódio de Rembrandt.
- Não esfregue assim a cara, Ana. Você vai se machucar.
- Quero me machucar.
- Então se machuque. Mas vem.
- Minhas unhas eram limpas. E agora esta crosta - gemeu ela examinando os dedos em garra. Limpou a gota de sangue que lhe escorreu do arranhão aberto no queixo. - Confessa que quer seguir sozinho a viagem, que quer se ver livre de mim!
Nem isso. Não queria nada, apenas comer. E mesmo assim, sem aquele antigo empenho do começo. Gostaria também de sair dançando, a música leve, ele leve e dançando por entre as árvores até se desintegrar numa pirueta.
- Você disse que seria a menina mais feliz do mundo quando pisasse comigo em Amsterdã.
- Tenho ódio de Amsterdã. Eu era tão perfumada, tão limpa. Me sujei com você.
- Nos sujamos quando acabou o amor. Agora vem, vamos dormir naquele banco. Vem, Ana.
Ela puxou-lhe a barba.
- Quando foi que fiquei assim tão imunda, fala!
- Mas eu já disse, quando deixou de me amar.
- Mas você também - ela soqueou-lhe fracamente o peito. - Nega que você também...
- Sim, nós dois. A queda dos anjos, não tem um livro? Ah, que diferença faz. Vem.
- O banco é frio. 
- Vem, que amanhã a gente vai ver o museu de Rembrandt, lembra? Você disse que era o que mais queria ver no mundo.
- Tenho ódio de Rembrandt.
- Não esfregue assim a cara, Ana. Você vai se machucar.
- Quero me machucar.
- Então se machuque. Mas vem.
- Minhas unhas eram limpas. E agora esta crosta - gemeu ela examinando os dedos em garra. Limpou a gota de sangue que lhe escorreu do arranhão aberto no queixo. - Confessa que quer seguir sozinho a viagem, que quer se ver livre de mim!
Nem isso. Não queria nada, apenas comer. E mesmo assim, sem aquele antigo empenho do começo. Gostaria também de sair dançando, a música leve, ele leve e dançando por entre as árvores até se desintegrar numa pirueta.
- Você disse que seria a menina mais feliz do mundo quando pisasse comigo em Amsterdã.
- Tenho ódio de Amsterdã. Eu era tão perfumada, tão limpa. Me sujei com você.
- Nos sujamos quando acabou o amor. Agora vem, vamos dormir naquele banco. Vem, Ana.
Ela puxou-lhe a barba.
- Quando foi que fiquei assim tão imunda, fala!
- Mas eu já disse, quando deixou de me amar.
- Mas você também - ela soqueou-lhe fracamente o peito. - Nega que você também...
- Sim, nós dois. A queda dos anjos, não tem um livro? Ah, que diferença faz. Vem.
- O banco é frio.  
- Olha minhas unhas. Até a menininha fugiu de mim - queixou-se ela enlaçando as pernas.
- Desconfiou que você ia avançar no seu bolo.
- Olha minhas unhas. Será que aqui também dão comida em troca de sangue? -
- Não sei.
- Uma droga de comida. Aquela de Marrocos - disse ela esfregando na areia a sola da sandália.
- Nosso sangue também deve ser uma droga de sangue.
O silêncio foi se fazendo de pequenos ruídos de bichos e plantas até formar um tênue tecido que perpas¬sava pela folhagem, enganchava-se imponderável numa folha e prosseguia em ondas até se romper no bico de um pássaro.
- Queria um chocolate quente com bolo. O creme, eu enchia uma colher de creme que se espalhava na minha boca, eu abria a boca...
Abriu a boca. Fechou os olhos.
Ele sorriu:
- Estou ouvindo uma música, a gente podia dan¬çar. Se a gente se amasse a gente saía dançando.
Ela levantou as mãos e passou as pontas dos dedos nos cabelos. Na boca.
- E agora? O que acontece quando não se tem mais nada com o amor?
Quase ele levou de novo a mão no bolso para pegar o cigarro, onde fumara o último?
- Sopra o vento e a gente vira outra coisa.
- Que coisa? 
- Sei lá. Não quero é voltar a ser gente, eu teria que conviver com as pessoas e as pessoas - ele murmurou. - Queria ser um passarinho, vi um dia um passarinho bem de perto e achei que devia ser simples a vida de um passarinho de penas azuis, os olhinhos lustrosos. Acho que queria ser aquele passarinho.
- Nunca me teria como companheira, nunca. Gos¬to de mel, acho que quero ser borboleta. É fácil a vida de borboleta?
- E curta.
O vento soprou tão forte que a menina loura teve que parar porque o avental lhe tapou a cara. Segurou o avental, arrumou a fatia de bolo dentro do guardanapo e olhou em redor. Aproximou-se do banco vazio. Procurou por entre as árvores, voltou até o banco e alongou o olhar meio desapontado pela alameda também deserta. Ficou esfregando as solas dos sapatos na areia fina. Guardou o bolo no bolso e agachou-se para ver o passarinho de penas azuis bicando com disciplinada voracidade a borboleta que procurava se esconder debaixo do banco de pedra.


1977

In “Mistérios”, Lygia Fagundes Telles
Nova Fronteira, 4ª Edição, 19801. 

sábado, 23 de abril de 2011

Video




Adoro essa musica... ainda fico na expectativa de ouvir isso...rsrsrs, uma vez afirmaram - Era isso que vc gostaria de ouvir não é?
Não me lembro o que respondi, mas a romantica que existe em mim com certeza gostaria de ouvir isso...

terça-feira, 8 de março de 2011

Acordou com a chuva, precisava de um lugar para se esconder, pensou e decidiu levantar, dessa vez a cabeça não latejou tanto, juntou o pouco que tinha conseguido carregar do inferno...
Só a simples lembrança lhe trazia arrepios a espinha, mas era passado, um terrivel e aterrorizante passado, mas ainda sim não faria mais parte de sua vida, sorriu por detras dos olhos inchados, nunca mais aquilo aconteceria de novo, não permitiria mais que alguém mandasse em sua vida novamente, alisou a saia rasgada e suja pensou no tempo em que tudo era mais simples e que vestia tecidos finos e belos, bom aquilo não era mais sua vida a muito tempo, desde que havia sido vendida, cuspiu no chão, ninguém mais a destruiria daquela forma.
Caminhou na chuva devagar saboreando a água que molhava o rosto e o corpo, quando era criança banhos de chuva eram frequentes, a mãe dizia que a chuva lavava a alma, e foi examente o que sentiu, pela primeira vez desde que saira do inferno se sentia livre!
Pulou, correu, dançou e girou, a liberdade tinha um gosto ótimo, desde os 13 anos não se sentia assim, limpa, sem sujeira, pura... A chuva estava se tornando forte, olhou em volta, ao longe avistou uma pequena cabana com a aparencia abandonada, resolveu caminhar até lá.

domingo, 6 de março de 2011

Cansada olhou em volta, não conseguia lembrar o que tinha acontecido se sentou na grama e riu alto e desesperadamente, mal podia acreditar! Olhou as mãos, os braços, estavam inteiros, a roupa havia se rasgado no caminho, os pés estavam esfolados.... Mas o que importava, estava viva afinal não é?
Agora precisava descobrir onde estava, se levantou devagar, quando conseguiu ficar de pé uma vertigem terrível a derrubou no chão, colocou a mão na cabeça que agora latejava, sentiu algo quente, bom afinal não estava tão ilesa como constatou... O sangue nas mãos revelou  que a fuga não havia sido tão bem sucedida, olhou em volta novamente, agora os olhos ardiam como fogo, e de repente a escuridão...
Será possível que tenha ficado cega? Tateou em volta e encontrou a bolsa, procurou no interior dela o cantil com água, despejou um pouco nos olhos e na região da cabeça onde havia encontrado sangue.
Os cabelos castanhos que um dia foi tão invejado agora estavam curtos feitos os de um rapaz, resolveu descansar um pouco afinal a cabeça pesava... Mas, e se dormisse e não mais acordasse? Não podia dormir pensou em pânico, tentou abrir os olhos, mas inutilmente, afinal nada enxergava. O desespero tomou conta dos seus pensamentos, não podia deixar que aquilo ocorresse, havia lutado tanto para fugir daquele inferno, para que? Para nada? Para morrer sozinha nem sabia aonde?
Tateou novamente em volta, e encostou-se a uma arvore da onde estava próxima, pegou a pequena bolsa e se agarrou a ela, será que ainda restava alguma comida? Enfiou a mão na bolsa e encontrou um pedaço do que imaginou ser o pão que vinha carregando a uma semana, mordeu  e esperou, quem sabe passasse alguém e a ajudasse...